quarta-feira, 10 de novembro de 2010




Efeito número 1

Um tanto de areia preta com água mexe e vira argila. Vira uma escultura, que é fotografada. A foto é impressa num papel de parede e este é colado num muro bem grande. O muro é marretado e demolido até restarem milhares de pequenos pedaços nos quais ainda se notam, em fragmentos, o papel de parede com a foto da escultura de argila. Esses milhares de pedaços são amontoados junto a um espelho e formam, por efeito, dois montes idênticos lado a lado. Esses dois montes são filmados em película durante cinco minutos. Essa película é cortada em vários pedaços que são pendurados num extenso varal.


5 minutos pendurados num varal.


Esse varal com essas películas é fotografado em preto e branco, à contra-luz, lembra as listras de uma zebra. Essa imagem é impressa num tecido branco, criando uma interessante estampa que vira um biquini. A modelo ganha o biquini do artista que criou a estampa. Ela é fotografada por uma revista de ti-ti-ti usando o biquini de estampa feito a partir da foto das películas que filmaram os montes de entulho com fragmentos do papel de parede impresso com a foto da escultura de argila. O ex-namorado da modelo está na praia lendo a revista de ti-ti-ti. Ele vê a ex-namorada-modelo na foto com o dito biquini. Ele arranca a página da revista, amassa até virar uma bolinha, cava um buraco na areia preta da praia. Passa uma onda.


Efeito número 2

Com as mãos em concha, a amiga cochicha no ouvido da amiga. Uma palavra escapa por entre os dedos, escorre pelo braço da menina, cai no chão do quintal e entra na terra pelas ranhuras do piso. Lá passa uma minhoca que, ups, engole a palavra e segue caminho em direção à horta da casa. A minhoca cavuca a terra e vai semeando a palavra junto ao pé de mandioca. O pai cava a mandioca, cozinha a mandioca, e como palavra não tem medo de fervura, resiste firme até seguir pro jantar da família. A família come aquela mandioca com aquela palavra junto e fica com essa palavra na cabeça toda hora, dia inteiro, mês todo. O pai resolve vender um fusca, põe anúncio no jornal e sem saber faz uso da tal da palavra. O futuro comprador do fusca recorta o anúncio do jornal e fica com aquela palavra no bolso enquanto vai pro bar. E toma cerveja com os amigos, e toma cachaça, e toma, e toma mais, e o porre tomou conta. Tira então o recorte do bolso e conta pros amigos do anúncio, mas a palavra sai torta perneta manca até a beira da estrada embriagada vai atravessar o asfalto tá quente pelando vai atravessar vem uma onomatopéia em alta velocidade brummmmm cuspida pelo fusca, a palavra ofusca.


Efeito número 3

Dois fuscas se chocaram. O que vinha mais rápido era de um verde opaco fruto de muitas tardes de sol chapando a lataria. Sol de Santos, podia-se ver pela placa que agora pendia sobre o capô do outro fusca, esse de cor rosa-choque, que descera a ladeira brecando em ziguezague. O fortíssimo impacto amalgamou os veículos de tal forma que a parte dianteira do fusca verde foi engolida pelo fusca rosa, sendo mastigada para o seu interior,  criando uma insólita noção de dentro e fora.  Após três capotadas, os dois automóveis imóveis escancaravam de barriga pra cima o avesso das latas, cuja ferrugem marrom completava o azul claro do céu no melhor clima retrô. Interessante notar que os pneus do fusca, difícil saber se do verde ou do rosa, estouraram e desmaiaram como massa de pão fervendo no asfalto, fumaça saindo, o céu queimado. As antenas dos carros voaram, mas permaneciam ao redor da cena equilibrando o tom prata presente também nos parachoques, que contorcidos, lembravam esculturas de Jonh Chamberlain. Poderia-se valer da poesia dizendo que foi um verdadeiro abraço de fuscas não fossem os pedaços de carne estilhaçados por toda a carcaça, que salteavam de vermelho negro aquela composição verde-rosa, comprometendo o que seria uma notável referência ao samba da Mangueira.

EFEITOS



Efeito número 4


Um adjetivo arrogante. Orgulhoso, atrevido, petulante. Um adjetivo sem dó, nem pudor. Adjetivo sem jeito e sem objetivo. Um parágrafo só desses adjetivos. Uma lauda, capítulo, uma obra completa, completíssima, completamente cheia de adjetivos. Uma biblioteca de adjetivos. Uma festa literária inteira, inédita, internacional, Inesquecível Festa Literária de Adjetivos. Depois um congresso. E uma lei pros adjetivos. Um vereador pros adjetivos. Uma passeata de adjetivos. Uma guerra. Adjetivos reféns, adjetivos mortos. Ressurreição de adjetivos. Daí uma igreja dos Adjetivos do Dia Seguinte. Um grande Deus adjetivo. Uma civilização adjetiva. Um continente adjetivo. Um hemisfério. Os dois. Um planeta adjetivo. Uma galáxia adjetiva. E então, um universo adjetivo. E aqui nos perguntaríamos: existem adjetivos em outros planetas? E enviaríamos um adjetivo para o espaço. O adjetivo voltaria sem notícia de adjetivos alienígenas. Diríamos portanto: o adjetivo é incompetente. E continuaríamos nossas pesquisas.


Efeito número 5
prólogo para o Efeito número 6

No dia que o mundo acabou, as ideias ficaram soltas no ar. As fórmulas, os insights, e as piadas todas juntas. Mesmo as ideias esquecidas, as fracas, as sem pé nem cabeça. É certo que algumas ideias esqueciam de si mesmas e outras se confundiam com exemplares similares, pois talvez toda ideia seja uma outra fantasiada. Mas houve uma ideia central, da qual nem se tinha notícia antes do mundo acabar, e que mudou o rumo de tudo, ou de nada, que existia: a ideia de que as ideias tem código genético. Com o passar do tempo, as ideias cresceram, ganharam de volta o acento, criaram membros, orgãos, e se reproduziram. Passaram a dar a luz a novas ideias, excitantes como um raio ou comuns como algodão. Grupos de ideias formaram ideologias. Ideias visuais viraram ideogramas. Ideias populares eram tidas como ideais. Maduras, as ideias botaram o pé no chão. E ainda que nenhuma ideia se lembrasse mais de como era o mundo antes dele acabar, aos poucos as ideias sobre o mundo começaram a surgir. Foi como se a ideia mais genial de todos os tempos tivesse nascido. Uma ideia foi contando pra outra, que espalhou pras demais, e logo todas as ideias concordaram que seria ótimo se existisse um mundo.


Efeito número 6

No mundo das ideias, aderência pode ser uma freiada de carro no asfalto, distante de uma pena, que flutua, como um satélite. Na falta de hierarquia nesse reino, absurdos e maravilhas fazem festa. Quando a coerência encontra a incoerência, é faísca, veneno e briga de razão. Se calha da sorte estar por perto, pode dar em parto, e pode até virar conceito. Que se espalha no espaço, onde pulsam os cometas, fogos de artifício e pontos de exclamação. Abajures, celulares e vagalumes iluminam as dúvidas que saem em busca de letreiros de neon piscando bar. Opiniões controversas, rinocerontes e a paz dividem a história. O enredo é um emaranhado de teias. No mundo das ideias, trabalho é um dedo enrugado que também chama criança na piscina, os holofotes e os elefantes se aproximam, e carnaval fora de época é o mesmo que pipoca. Transversal e perpendicular são variações do mesmo tema, e não se importam com a reta, nem com a referência. A trajetória de uma palavra é sempre incerta, disserta a metáfora. Enquanto busca ideias para dizer tubarão, pavio e jaboticaba.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A vida após o muro


Texto vencedor do concurso literário da Revista Piauí
Edição número 33


De nada adiantara a tranca de aço maciço chumbada na entrada principal. A Casa de Assistência Jacarandá perdera seu mais antigo e astuto hóspede, num descuido daqueles dignos de quem tem os dois olhos no peixe e se esquece do gato. Foi numa manhã ensolarada que Zé Gardênio escapuliu por um túnel cavado na terra às próprias mãos e à custa das dezenas de horas solitárias dedicadas à faina na horta comunitária, da qual, já há mais de 20 anos, fora delegado o manda-chuva.

O bedel da Casa cansara de ouvir o bate-papo interminável que Zé Gardênio travava com pés de alface, escarola e outras verduras – incluindo seu mais fiel companheiro, um pé de repolho – e largava da guarda para enrolar na paquera a mocinha da limpeza. Era o suficiente. Pazinha nas mãos, o designado esquizofrênico socialmente inapto (conforme seu prontuário), ganhava valiosos centímetros a cada dia, se aproximando pouco a pouco ao Berlinzão, como os débeis chamavam carinhosamente o muro dos fundos do sanatório, onde ficava a horta.

Chegado o grande dia, Zé Gardênio despediu-se das alfaces, escarolas e de seu amigo de fé, o pé de repolho. Piscou para o sol que assolava a careca, e, deixando escorrer um fio de baba no seu macacão amarelo escolhido para a fuga, rememorou com pesar os anos que passara no sanatório. Não mais seria um doido varrido. Decidido, aprumou-se como se fora debutar em um novo hemisfério. Confirmou a ausência de vigilância por perto – teria a mocinha da limpeza cedido às investidas do bedel? –, afastou a lona que escondia a entrada do túnel e, num rebento, atirou-se com volúpia buraco adentro, engatinhando determinado rumo ao mundo dos normais.

Sete minutos mais tarde, Zé Gardênio ganhara a liberdade. O buraco de saída do túnel dava para uma movimentada avenida que margeava o sanatório. Deu umas palmadas em si, como que para sacudir a poeira do passado, e achou-se um homem são, pronto para restabelecer contato com seus iguais. Mas quando ergueu a cabeça e fitou os olhos na paisagem à frente, deparou-se com a complexidade de um mundo o qual desconhecia. Viadutos, esquinas, arranha-céus. Camadas sobrepostas de chão, nenhum horizonte. A cidade desbotada, intransponível, indecifrável. Viu-se só, paralisado, e tinha a testa franzida em ziguezague. Sentiu-se espremido em formas geométricas como se cada linha deste cenário fosse um limite para sua existência e a ausência delas, uma ameaça. Aflito, refletiu consigo: não posso mover meus passos por esse atroz labirinto.

Sete minutos mais tarde, Zé Gardênio valia-se do ombro amigo do pé de repolho para desabafar a experiência da vida após o muro. O aterrado hortaliço, curioso pelo relato que ouvia, indagou com máximo interesse: “Mas há lá fora outros iguais a mim?”.

Deixando escorrer mais um fio de baba pelo macacão amarelo, Zé Gardênio respondeu com uma certeza abissal:

“Não. Lá fora é tudo uma grande, vasta e interminável plantação de abobrinhas.”

Ó


Baseado no título do livro de Numo Ramos: Ó
ganhador sétima edição do Prêmio Portugal Telecom de Literatura

Ó

De ode. Às possibilidades de reinvenção da roda, do mundo, ou, ao menos, do nosso olhar. Ó do espanto: o desvelo do inédito. A ponta do fio do novelo. De onde tudo começou, se transformou, e absorvemos hoje como verdadeiro. A lã na qual nos refugiamos do frio.

Forma diminutiva do verbo olhar na 3ª pessoa do imperativo afirmativo (olha você), esse Ó não é o da admiração (Óóó...). E sim do pasmo, do queixo caído. Essa contração onomatopéica – e gutural – é uma interjeição que parece guardar em si uma ironia invencível: uma breve letra, da forma circular comum, sem pretensão contorcionista ou vaidade, potencializa e ilumina gratuitamente, pela força do seu acento, e seu caráter íntegro e afirmativo, tudo aquilo a que se refere ou designa. Como um espelhinho que reflete o sol numa parede. E faz a conjunção entre o verbo e objeto chegar em tom singelo. Como uma obra que comunica muito com pouco. Um artista tímido. O bolo delicioso da vovó que diz: não foi nada.

Esse mesmo Ó ainda vem alertar atenção e cuidado. Não é tão simples como você está pensando. Viver é arriscado, ou anestésico, depende da elasticidade das suas pálpebras. E traz em seu som uma informalidade de tom pessoal, como dois amigos no boteco discutindo futebol. Só que o jogo é mais denso e movediço. Por isso Ó, a partir da forma circular, dá a impressão de circunscrever um mundo, do qual um observador (o acento) se desgarrou a tempo, salvou-se, e agora observa esse mundo de fora, comentando-o.

Quando usado como expressão (é o ó) aponta algo incabível, inomeável, e que carrega certa conotação de desordem. Posto assim sozinho, Ó é a um só tempo aquele espelinho que ilumina, e a própria escuridão. Então Ó talvez traga o recado da ilusão que criamos, e à qual nos confundimos para sobreviver num mundo contraditório, vesgo, e sem respostas. Esse nó, que só parece desatar com a luz de um farol.


domingo, 7 de novembro de 2010

Notas sobre Istambul



9 NOTAS SOBRE ISTAMBUL


1. É irresistível ceder à comparação da paisagem urbana de Istambul com a grafia de seu nome. Marcante, a primeira imagem da cidade para quem chega pelo Bósforo é um plano de altura uniforme, com certo desenho montanhoso, perfurado com finas elevações em forma de torre: são as minaretes das mesquitas - que soam cinco vezes ao dia - com suas vozes convocando para a reza. Istambul: é como se a palavra estivesse em busca de tocar o céu.

2. Sem acréscimo, a paisagem que acolhe o visitante é sem dúvida uma das mais belas do mundo. Somada ainda à sua qualidade única de mediar Europa e Ásia, fato que desde vários séculos a tornou palco fundamental da história da humanidade. Assim, um passeio pelo canal é ter de cada lado um hemisfério, geográfico e cerebral, natural e cultural, guerra e paz, onde a luz nasce, se põe e ilumina claramente e diferentemente, cada qual.

3. Passo adentro, Istambul é terra firme. Mas ainda há as pontes. Todos os dias, todas as horas, centenas de homens, e somente homens, pescam nas pontes sobre as águas - e as águas-vivas, sim, milhares delas - do Bósforo. Passam horas debruçados nos corrimões, costas para as pessoas e a cidade, varas em riste, olhos ao mar, e parece não importar o saldo do anzol. Mas sim fisgar um sinal de esperança. É no aguardo de uma surpresa divina que estão. E a partir dessa cena é possível entender a hulzu, a melancolia de Istambul.

4. A fisionomia do turco reforça a hulzu, pois é a sua estampa máxima. Pessoas com densidade de povo antigo. Diferente dos brasileiros, americanos, canadenses, australianos, povos jovens. É muita partilha, batalha, troca de poder, cultura e resolução. Um ar desiludido, cansado de crer, mas impelido a fazê-lo. As pessoas parecem precisar de um tempo para deixar todo o outro tempo que veio atrás, pois em parte ainda vivem nele. O fim do Império Otomano e o começo da República foi o último dos rompimentos, que com ele levaram diversas das suas tradições. Há pessimismo. Por isso quando estão felizes, parece ser apesar de algo.

5. Em Istambul, as ruínas não são conservadas e reapresentadas como patrimônio histórico a exemplo das cidades européias ocidentais. Elas apenas estão lá. Isso dá à cidade a sensação do passado ainda estar presente, mas não só isso: traz a sensação de feridas expostas, como se, ao não legitimá-las devidamente, elas residissem numa sub-memória, ora reforçando um trauma antigo, ora resolvendo-o.

6. É pena que a cultura islâmica tenha ficado tão estigmatizada – negativamente – nos tempos de hoje. Os muçulmanos de Istambul guardam lindos rituais, mesquitas, uma cultura de alegria, comércio, cultura e muita música. Há poucas coisas mais sublimes do que ver um dervixe girar.

7. Nas mesquitas, as câmeras fotográficas nao tem paz. Na terra dos incríveis doces árabes e delicioso café, o Starbucks está sempre cheio. Os turcos fazem grande esforço para serem europeus ocidentais. E aí tudo se parece. A globalização pasteuriza. Mas com paladar atento e um pouco de lupa, é sempre possível sentir o gosto da nata.

8. Em turco peruca é “peruk”, cigarro é “sigara”, táxi é “taksi”, polícia é “polis”, tráfico é “trafic” e lavabo é “lavabo”. Além disso, escuto no turco um sotaque português. Mas não importa. Mesmo assim, turco ainda é russo pra mim. Só quando um búlgaro fala inglês para ser entendido aqui, só aí é que dá uma certa confiança.

9. O nariz do turco não mente.


sábado, 6 de novembro de 2010

Uma sexta-feira azul







Matéria publicada no site Arquiteturismo, sobre as portas azuis de Chefchouen, pequena cidade azul ao norte do Marrocos.

"Eram portas íntegras, descascadas, escondidas, exibidas, de madeira maciça, de ferro amassado, com olhos desenhados, com cadeados pendurados, de fechaduras douradas, de gatos caídos às soleiras, de batentes falecidos, ranhuras cromáticas, portas com detalhes intrometidos e outros muito tímidos, portas que lembravam a da nossa casa e, algumas, que nos faziam sentir a distância de casa."


sábado, 18 de setembro de 2010

A NOIVA DO CONDUTOR - Ilustrações de Laura Gorski




Texto sobre o trabalho de Laura Gorski para o livro A NOIVA DO CONDUTOR, lançado pela editora Terceiro Nome, baseado na opereta escrita por Noel Rosa em 1935.


A NOIVA DO CONDUTOR, de Noel Rosa

Ilustrações de Laura Gorski


As ilustrações de Laura Gorski para “A Noiva do Condutor” foram concebidas pela artista em meio à dezenas de horas de audição da única gravação existente desta opereta, realizada em 1985, pelo selo Eldorado, e que tem como destaque a voz de Marília Pêra, como Helena, e de Grande Otelo, no papel de seu pai. Audição que, a cada vez experimentada, fez emergir as camadas sutis que esta obra guarda em seu enredo, poesia, e sonoridade.

Tal qual à obra de Noel Rosa, o trabalho de Laura Gorski também faz emergir camadas, as matizes de um tempo no qual viveu o autor: quando ainda havia namoros de portão, serenatas ao pé da janela, e quando mesmo a mentira – sustentada na opereta pelo condutor – trazia consigo uma inegável simpatia.

As nuances desse tempo foram ambientadas por Laura Gorski após pesquisas sobre a paisagem do Rio de Janeiro da década de 30. Com algumas referências em mãos, a artista criou as personagens e os cenários que compõem a opereta a partir de seu trabalho – já habitual – com desenho e recorte. Durante seu processo de criação, o bisturi foi recortando lentamente, sobre as folhas brancas ou pretas, o desenho previamente traçado, como que abrindo espaços no papel para que as imagens da história de Noel pudessem se revelar.

Essa espécie de arqueologia poética da artista obedeceu, em seu próprio ritmo de execução, ao mesmo compasso lento, cadencioso, do período retratado. O tempo dos bondes, das ruas de paralelepípedos, da fumaça de cachimbo que sobe ao sabor da emoção de cada momento.

Ao conceber a caracterização das personagens, na qual o que predomina é o uso do desenho, as singularidades propostas pela artista trazem o mesmo clima da época, por meio de uma leveza paciente, quase ingênua, e do bom humor que se faz presente nas feições de Helena, Joaquim, Doutor Henrique e Jota Barbosa, no gestual e vestimentas criadas, e na cor levemente amarelada oferecida a todos eles, como forma de alçar as personagens ao plano de destaque proposto pela opereta.

O aspecto gráfico, de linhas suaves, espaços vazios, e de contraste entre poucas cores nos desenhos de Laura Gorski, remetem ainda à simplicidade não só da vida desta década de 30, mas também da linguagem própria do texto de Noel para tratar do cotidiano, de forma simples, direta, com bom humor e ironia. Neste sentido, texto e imagem resultam num feliz casamento, como o de Helena e Joaquim ao final da história. No entanto, pode-se ver no livro, que ambos nunca deixam de flertar um com o outro, ora se mirando, ora se comentando, ora se despedindo; como em um namoro de portão.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Carregadores de Piano



                              

Conto inspirado na série de ilustrações de Manu Maltez
"Carregadores de Piano"


São homens notáveis. Caminham pelo centro da cidade, pelas calçadas, eles, os carregadores de piano. Foi do alto de uma antena que eu vi pela primeira vez. Ainda era madrugada, nas horas que me mandam pra esses consertos; caiu uma ferramenta, agachei pra pegar e nisso estava lá, atravessando a praça, despercebido pelos mendigos que dormiam nos bancos.

Desde então sempre que estou a arrumar antenas, esqueço do céu e olho pra baixo. Até prefiro essas horas tímidas da noite, quando é mais fácil vê-los. Os carregadores de piano andam sozinhos, usam a mesma roupa negra, esfiapada, e os sapatos muito mais largos que os sorrisos, que escoam pelos bueiros por onde passam.

São estivadores da poesia. Nada os silencia, nem os calos. Eles evitam os palpites das pessoas, os olhares de interrogação, as conversas fiadas. São avessos aos atos premeditados, a apatia rasteira do dia-a-dia. Interessa-lhes o susto, a nota, a partitura do acaso. Quando é tempo de pausa, estacionam o piano em local ventilado, se metem dentro junto às cordas, aconchegam a corcunda, e dormem. Os ombros só são vistos quando tocam. É a mesma hora em que fazem as pessoas chorarem.

Consertar antenas é um trabalho de risco. Estar mais perto de Deus só te faz se sentir menor. E tem os raios. Que podem te partir. Sem dúvida mais leve que carregar pianos, mas ainda assim. Daí cresceu a simpatia em mim. Passei a acompanhá-los, segui-los aonde vão, nas mãos o meu caderninho, catando as cenas que eles deixavam pra trás.

Anotei três:

I

O homem anda. Nas costas, o piano. De longe vem, o trem. No relógio da sincronicidade, duas linhas. Uma vertical, do trem, que vem; outra horizontal, do homem, que vai. Um ângulo reto, de certo encontro. A cada ajeitada do piano nas costas, toca uma nota. O homem não dá ré.


Uma nota.


Barulho do trem, barulho do trem, barulho do trem, barulho do trem, barulho do trem.


Outra nota.


Barulho do homem.


Que vai.


II


O homem anda. Nas costas, o piano. O centro da cidade é grande, e fundo. Ele escolhe o prédio mais alto. No elevador, ajeita o piano sem deixá-lo tocar o chão. Chega no último terraço: claro feito talco, arejado, palco. Respira; pois após muitos andares, o piano pesa uma gravidade. Sobre a cidade, o céu é platéia. Aproxima-se da beira. E começa.


III

O homem anda. Nas costas, o piano. No pé a ferida só aumenta. É o atrito da areia da praia: volumosa. A cada passo do mar sai uma nota, deserta. E convida. Os peixes e até as sereias se juntam para a seresta. Vem uma onda grande; a nota é maior. O piano responde. Nas costas da onda. À custa do homem.


Aconteceu ontem. O dia estava quase amanhecendo quando já fazia cinco horas de uma rara sessão: ele tocara toda a noite, em cima de uma laje, embaixo de chuvisco, enquanto eu espiava por detrás duns caixotes. Nesse meu quieto esconderijo, pensei que faltava ar, mas era o efeito da música.

Não sei dizer sobre aquelas composições. Sei que me levaram tão longe que eu não saberia mais voltar sozinho. O piano era uma larga escadaria, em espiral, que parecia saudar estrelas. Eu viajava mais alto que minhas antenas, sem sinal de mim mesmo. Sustenido, e desnudo.

Ainda era escuro quando vi um vulto se aproximar. Na minha hipnose, assustei com a silhueta que chegava perto. Cada vez maior. Absorto, eu ouvia um trecho do piano que se repetia, se repetia, se repetia em transe na minha mente. Quem vinha era negro e forte. Saquei logo a chave de boca. Afastei num chute o caixote. Faltava um passo pro sujeito. Meti-lhe a chave na testa. Era um homem. Caiu da laje.

O piano parou de tocar. E não tinha mais pianista. O primeiro raio de luz fez uma nuvem se mexer e todo resto minguar. Nenhum ruído sequer. Lá embaixo, dava pra ver a corcunda desmanchada entre os fiapos da roupa negra. Os sapatos largos virados pro chão, e uma lembrança fina escorrendo no ralo. Ontem, eu matei um carregador de piano.

Na mesma manhã, procuro a antena mais alta. Subo. Saco meu caderno. Olho para as ruas, não há ninguém. E também não há consertos. Não há o que anotar. Jogo minhas ferramentas fora. O silêncio é mais duro aqui de cima.

São cinco as trombetas que soam. Quando morre um carregador de piano, dezenas deles se juntam ao redor de uma grande cova. E tocam. A cerimônia evoca todas as notas que aquele tocou em vida. Todos os andares, os cenários, os sorrisos encontrados nos bueiros. Recolhe-se todo o choro que as pessoas choraram ouvindo sua música, e o choro que agora choram por sua morte. Deixa-se cair a tarde e deixa-se também cair a chuva, para que ao fim desse dia, chovam lágrimas de acorde.


quarta-feira, 3 de março de 2010

Chuvisco


Conto premiado no CONCURSO NACIONAL DA CEPE
http://www.cepe.com.br/editora_regulamentoconcurso.php

(Companhia Editora de Pernambuco)
nov / 2010

Revisto-me naquela foto. Aquele dia. Mas não me acho. Chuvisco. Penso nele. Desdobro o coração e redescubro num vinco a trilha da nossa amizade. Calibre de antigamente. Mesmo tempo em que a verdade ainda dava em pé, e que as cores do casarão-fazenda cochichavam histórias do lugar. Familiazona; cesta farta de tudo que eu sonhava pra mim; mas vida é viagem que é ida sem vinda e eu acrescido de passado descarto adulterar infância. Mesmo que me sinta caroço. Hoje olhar eu posso.

Bisbilhotava por cima do muro. Via filme. Uma penca de primos trapeziava em galhos e eu seguia sombra-meninos e sombra-meninas e sombra-árvores dançarem juntos na terra do chão. Inveja é palavra adulta mas criança na sensação. No meu lado da vida tinha mata, mas tão sóbria que assustava raios de sol. Eu me sentia escuro.

Aquela família vivia sempre pra fora. Por isso eu sabia de cor o carrossel do dia-a-dia. Cedo despertar; o avô horta, o pai cidade; a mãe cozinha; os primos liberdade. De tudo eles. Quanto mais na roça arruaça armavam, mais pra casa confusão traziam. E eu gostava de ver. Depois do almoço de cheiro bom, a tarde calava em sépia, a mãe caçava piolhos nos mais miúdos, o pai voltava com seu amor devagar. De longe, o avô, fumo pitado, trazia o cavalo chamado Saudade.

Das cenas que acompanhava, tinha uma predileta que imantava minha atenção. Ria do magricela de suspensórios que bailava sozinho. Não raro, liderava uma confederação de fedelhos em aventuras galácticas; mas quando só, mergulhava em si até sumir de onde eu o via. A um só tempo, ambas ocorrências faziam mágica na minha imaginação e me congelavam estátua. De olhos debruçados sobre o muro, eu assistia.

Aconteceu num dia em que a cama me dispensou do sono mais cedo. E a saída foi espreguiçar a madrugada no quintal com direito a espiada no vizinho. Nessa manhazinha, o magricela orquestrava astros com uma vareta, desenhando planetas no terreno a minha frente. Eu suspeitava que seus suspensórios enganchavam no céu e que flutuar para ele era coisa possível. De algum lugar, também me via vendo-o, de muitoemcima talvez, imaginando se ele me percebia, se tudo era real, ou se eu era o diretor dum filme só meu.

E foi quando eu viajava em imagens que a ficção tomou gole de realidade.

O menino largou a vareta e me fitou minutos alargados por um sorriso.

Ele se aproximou.


- Vem cá.


II
Durou um ano-luz o pulo que dei para o outro lado do mundo. Na descida, meu joelho ralou no tijolo: pedra, pele, sangue; estilingue ardente que me acordou aos nove anos de idade. Eu sequer havia aterrissado, e disparamos os dois em pique de corrida lado a lado, o vento fazia um corredor entre nós, enquanto ele me dizia que seu nome era Chuvisco.

Pouco mais, a manhã ia desvelando o roteiro que eu já conhecia. A horta esperando o avô, a cidade o pai, a cozinha a mãe, a liberdade todos os primos com quem vivi aquele dia de janeiro.

Eis que brincamos até tapar os buracos da vontade. Pelejas, mangas, riachos, rachas de charrete e broncas da mãe, igualzinho como eu pintava. Sem esquecer das jornadas épicas que Chuvisco oferecia de lambuja. Juntos inventamos batalhas de alvorada e ao entardecer já havíamos conquistado o mundo. Somados os primos, éramos uma só pessoa de 16 pernas; uma toada de pés descalços que a terra se acostumou mal de tanto beijo. Nossas risadas aguavam o ar e não tinha mais saber se estávamos correndo, nadando, ou voando. Até o tempo parou pra olhar: foi como se eu tivesse vivido uma saga de anos a fio costurada em uma sunga de pano. Naquele dia eu era um peixe do cardume. E me senti aceso.


III
Nesse mesmo dia é que foi feita a foto. Conforme costume, um profissional vinha da cidade visitando fazenda, mais fazenda, fazendo retratos de famílias (na minha não passou). Assim reuniram-se todos sob a orientação do fotógrafo.

E a cena grafou meus olhos num piscar estanque.

Primeiro plano: a horda de primos. Chuvisco na ponta esquerda, a molecada desengonçando na seqüência, e os piolhentos terminando a fila na direita. Lembro destes dois últimos, arredios, por causa das cacholas nuas.

Segundo plano: a prima mais velha, a mãe ao centro segurando a miúda, o pai ainda na cidade carece de presença na composição geral.

Terceiro plano: o avô e o cavalo Saudade. O homem usava chapéu diário, que dava sempre conforto de abrigo à família, como se protegesse a todos pela sombra das abas. Queimava também um cigarro de palha, cuja fumaça expirada eram as palavras que ele não tinha.

Quarto plano: o muro.

Quinto plano: os fundos de minha casa.

(...)

Inventario a figura completa. Reviso todos os planos. Tento me encontrar na foto.

Estou presente?

Busco em cada canto com lupa, passo os olhos em cada pessoa, não me vejo. Mas o retrato foi tirado naquele dia, naquele mesmo. Quando investigo melhor, acho uma mancha escura em cima do muro, junto às árvores da minha casa. Era o posto exato de onde eu espiava aquela família. Faço esforço. Coloco a imagem contra luz, vasculho o arquivo mental, quero clarear a área, as idéias, tento me revelar, mas se me revelar ali é que me perco de vez. Então a tudo faltaria sentido.

Trago refúgio na sensação: o registro físico daquele dia no corpo. Basta sentir as pernas seguindo Chuvisco, a água do riacho, o rangido da charrete, a vibração da sonora bronca da mãe. Está tudo aqui. Eu juro.

Pois é que lá eu vi o amor a olho nu.

Só que agora não me acredito, não me consumo, e rôo as unhas como se estivesse apagando memórias.

A imagem perde a cor, esqueço os nomes que sabia de cor, me sinto novamente em cima do muro.

Eu invisível tento ver a foto.

Mas a lembrança dispara sentada no cavalo.

Marisa


Maravilhosa. Foi só o que consegui dizer quando conheci Marisa. Um vestido amarelo colado no corpo, um sorriso largo igual às coxas, e bastou. Mexeu comigo de vez. Daí em diante, foi como se a cada dia eu descobrisse um continente. E o desbravasse feito um bandeirante. Era uma aventura por dia. Um martini na mão, e Marisa sorria. Viagens não planejadas, conversas de madrugada, e da cama até a varanda durávamos horas. À noite, não sei da lua, mas a taça estava sempre cheia. Café da manhã com champagne, ela pedia. Inebriado, nunca me abri tanto. Até que em pouco tempo minha casa ganhou Marisa, e se encheu de malas, cores e opiniões. Relampejou no meu gramado. De repente, de presente, uma mulher completa. Marisa, Marisa, Marisa até o final, vibrei numa noite. Na mesma em que ela me deixou.

Agora faço esforço e quase lembro. Ela tem um perfume que eu não sei o nome. Mas que ficou pairando na casa vazia. Golpe surpresa, falta baixa. Cadela. Que falta me faz. Vago pelos cômodos, zanzo pra lá e pra cá aos quilómetros, vejo minhas esperanças penduradas nos cabides, e o resto é tudo branco, eco e metálico. Não se despediu, foi embora sem ao menos uma saideira. No canto da sala, eu e os farrapos das mentiras que ela contava. Recolho meu coração em parcelas e vou até o mais fundo que posso, ensaiando alguma explicação. Enquanto isso, Marisa, sei lá aonde, acontece.

Vou ao banheiro. A fisgada na barriga já é conhecida das semanas que não saio de casa. Fico mirando os azulejos, investigando se aquelas tramas respondem algum mistério. Conto os pingos d’água que escorrem da torneira, e me sinto sozinho no silêncio entre eles. Daí remexo o cesto ao lado, desses que fingem revistas lidas, e busco algo relaxante pros olhos. É quando me espanto. Descubro um peixe intruso nesse aquário. Entre as revistas, sem saber se recuo ou comemoro, acho o diário de Marisa.

É evidente que abro na hora e o devoro. Anotações, um comentário – que eu discordo – sobre nossa primeira transa, e, de resto, recados pra si mesma, o esperado. Mas se os meses com Marisa me ensinaram alguma coisa, é que ela deixa tudo pro final. Assim avanço os dedos na última página, machuco o único objeto, além do meu coração, que me liga a essa mulher. E lá está, naquela letra garranchuda dela, um parágrafo derradeiro, indício confessionário, dessa biscate fugitiva:

Aquário

Saturno fertiliza sua verve independente e você hoje é mais. A estadia do sol em libra te liberta para novas aventuras com alguém especial. Deixe o bom senso em casa e vá debutar com a vida! É impossível ter o mar, mas você pode fisgar alguns peixinhos!


No rodapé, uma flecha em caneta bic aponta um nome que não é o meu: Samuel.

Puta que pariu. Eu devia saber: as aparências ensinam. Um caso a parte corria por baixo, como um lençol freático, e eu pastava amoroso, como se nada.

Imediatamente risco o nome. E arrumo um espaço na mesma caderneta pra desabafar. Antes lembro das garrafas de champagne esquecidas na adega e me aprumo pra cozinha pegar uma. Sento à mesa que já foi palco pra aquela atriz, meretriz, não sei mais, saco a rolha, a caneta, e talho o diário assim:

Vagabunda.

Deslancho outros elogios merecidos, desço a mão sem dó, escrevo, escrevo, escrevo; toca a campanhia.

Ouço o chinchalhar das chaves na fechadura, a maçaneta gira, a porta abre, um salto passeia pelo chão de taco da sala, e num repente uma brisa me faz chegar o cheiro daquele perfume que agora lembro o nome. Marisa está na porta da cozinha, olhando pra mim, e pra caneta, que rola no chão.

Eu paralisado.

- Me serve uma taça?


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