quinta-feira, 4 de março de 2010

Carregadores de Piano



                              

Conto inspirado na série de ilustrações de Manu Maltez
"Carregadores de Piano"


São homens notáveis. Caminham pelo centro da cidade, pelas calçadas, eles, os carregadores de piano. Foi do alto de uma antena que eu vi pela primeira vez. Ainda era madrugada, nas horas que me mandam pra esses consertos; caiu uma ferramenta, agachei pra pegar e nisso estava lá, atravessando a praça, despercebido pelos mendigos que dormiam nos bancos.

Desde então sempre que estou a arrumar antenas, esqueço do céu e olho pra baixo. Até prefiro essas horas tímidas da noite, quando é mais fácil vê-los. Os carregadores de piano andam sozinhos, usam a mesma roupa negra, esfiapada, e os sapatos muito mais largos que os sorrisos, que escoam pelos bueiros por onde passam.

São estivadores da poesia. Nada os silencia, nem os calos. Eles evitam os palpites das pessoas, os olhares de interrogação, as conversas fiadas. São avessos aos atos premeditados, a apatia rasteira do dia-a-dia. Interessa-lhes o susto, a nota, a partitura do acaso. Quando é tempo de pausa, estacionam o piano em local ventilado, se metem dentro junto às cordas, aconchegam a corcunda, e dormem. Os ombros só são vistos quando tocam. É a mesma hora em que fazem as pessoas chorarem.

Consertar antenas é um trabalho de risco. Estar mais perto de Deus só te faz se sentir menor. E tem os raios. Que podem te partir. Sem dúvida mais leve que carregar pianos, mas ainda assim. Daí cresceu a simpatia em mim. Passei a acompanhá-los, segui-los aonde vão, nas mãos o meu caderninho, catando as cenas que eles deixavam pra trás.

Anotei três:

I

O homem anda. Nas costas, o piano. De longe vem, o trem. No relógio da sincronicidade, duas linhas. Uma vertical, do trem, que vem; outra horizontal, do homem, que vai. Um ângulo reto, de certo encontro. A cada ajeitada do piano nas costas, toca uma nota. O homem não dá ré.


Uma nota.


Barulho do trem, barulho do trem, barulho do trem, barulho do trem, barulho do trem.


Outra nota.


Barulho do homem.


Que vai.


II


O homem anda. Nas costas, o piano. O centro da cidade é grande, e fundo. Ele escolhe o prédio mais alto. No elevador, ajeita o piano sem deixá-lo tocar o chão. Chega no último terraço: claro feito talco, arejado, palco. Respira; pois após muitos andares, o piano pesa uma gravidade. Sobre a cidade, o céu é platéia. Aproxima-se da beira. E começa.


III

O homem anda. Nas costas, o piano. No pé a ferida só aumenta. É o atrito da areia da praia: volumosa. A cada passo do mar sai uma nota, deserta. E convida. Os peixes e até as sereias se juntam para a seresta. Vem uma onda grande; a nota é maior. O piano responde. Nas costas da onda. À custa do homem.


Aconteceu ontem. O dia estava quase amanhecendo quando já fazia cinco horas de uma rara sessão: ele tocara toda a noite, em cima de uma laje, embaixo de chuvisco, enquanto eu espiava por detrás duns caixotes. Nesse meu quieto esconderijo, pensei que faltava ar, mas era o efeito da música.

Não sei dizer sobre aquelas composições. Sei que me levaram tão longe que eu não saberia mais voltar sozinho. O piano era uma larga escadaria, em espiral, que parecia saudar estrelas. Eu viajava mais alto que minhas antenas, sem sinal de mim mesmo. Sustenido, e desnudo.

Ainda era escuro quando vi um vulto se aproximar. Na minha hipnose, assustei com a silhueta que chegava perto. Cada vez maior. Absorto, eu ouvia um trecho do piano que se repetia, se repetia, se repetia em transe na minha mente. Quem vinha era negro e forte. Saquei logo a chave de boca. Afastei num chute o caixote. Faltava um passo pro sujeito. Meti-lhe a chave na testa. Era um homem. Caiu da laje.

O piano parou de tocar. E não tinha mais pianista. O primeiro raio de luz fez uma nuvem se mexer e todo resto minguar. Nenhum ruído sequer. Lá embaixo, dava pra ver a corcunda desmanchada entre os fiapos da roupa negra. Os sapatos largos virados pro chão, e uma lembrança fina escorrendo no ralo. Ontem, eu matei um carregador de piano.

Na mesma manhã, procuro a antena mais alta. Subo. Saco meu caderno. Olho para as ruas, não há ninguém. E também não há consertos. Não há o que anotar. Jogo minhas ferramentas fora. O silêncio é mais duro aqui de cima.

São cinco as trombetas que soam. Quando morre um carregador de piano, dezenas deles se juntam ao redor de uma grande cova. E tocam. A cerimônia evoca todas as notas que aquele tocou em vida. Todos os andares, os cenários, os sorrisos encontrados nos bueiros. Recolhe-se todo o choro que as pessoas choraram ouvindo sua música, e o choro que agora choram por sua morte. Deixa-se cair a tarde e deixa-se também cair a chuva, para que ao fim desse dia, chovam lágrimas de acorde.


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