quarta-feira, 3 de março de 2010

Marisa


Maravilhosa. Foi só o que consegui dizer quando conheci Marisa. Um vestido amarelo colado no corpo, um sorriso largo igual às coxas, e bastou. Mexeu comigo de vez. Daí em diante, foi como se a cada dia eu descobrisse um continente. E o desbravasse feito um bandeirante. Era uma aventura por dia. Um martini na mão, e Marisa sorria. Viagens não planejadas, conversas de madrugada, e da cama até a varanda durávamos horas. À noite, não sei da lua, mas a taça estava sempre cheia. Café da manhã com champagne, ela pedia. Inebriado, nunca me abri tanto. Até que em pouco tempo minha casa ganhou Marisa, e se encheu de malas, cores e opiniões. Relampejou no meu gramado. De repente, de presente, uma mulher completa. Marisa, Marisa, Marisa até o final, vibrei numa noite. Na mesma em que ela me deixou.

Agora faço esforço e quase lembro. Ela tem um perfume que eu não sei o nome. Mas que ficou pairando na casa vazia. Golpe surpresa, falta baixa. Cadela. Que falta me faz. Vago pelos cômodos, zanzo pra lá e pra cá aos quilómetros, vejo minhas esperanças penduradas nos cabides, e o resto é tudo branco, eco e metálico. Não se despediu, foi embora sem ao menos uma saideira. No canto da sala, eu e os farrapos das mentiras que ela contava. Recolho meu coração em parcelas e vou até o mais fundo que posso, ensaiando alguma explicação. Enquanto isso, Marisa, sei lá aonde, acontece.

Vou ao banheiro. A fisgada na barriga já é conhecida das semanas que não saio de casa. Fico mirando os azulejos, investigando se aquelas tramas respondem algum mistério. Conto os pingos d’água que escorrem da torneira, e me sinto sozinho no silêncio entre eles. Daí remexo o cesto ao lado, desses que fingem revistas lidas, e busco algo relaxante pros olhos. É quando me espanto. Descubro um peixe intruso nesse aquário. Entre as revistas, sem saber se recuo ou comemoro, acho o diário de Marisa.

É evidente que abro na hora e o devoro. Anotações, um comentário – que eu discordo – sobre nossa primeira transa, e, de resto, recados pra si mesma, o esperado. Mas se os meses com Marisa me ensinaram alguma coisa, é que ela deixa tudo pro final. Assim avanço os dedos na última página, machuco o único objeto, além do meu coração, que me liga a essa mulher. E lá está, naquela letra garranchuda dela, um parágrafo derradeiro, indício confessionário, dessa biscate fugitiva:

Aquário

Saturno fertiliza sua verve independente e você hoje é mais. A estadia do sol em libra te liberta para novas aventuras com alguém especial. Deixe o bom senso em casa e vá debutar com a vida! É impossível ter o mar, mas você pode fisgar alguns peixinhos!


No rodapé, uma flecha em caneta bic aponta um nome que não é o meu: Samuel.

Puta que pariu. Eu devia saber: as aparências ensinam. Um caso a parte corria por baixo, como um lençol freático, e eu pastava amoroso, como se nada.

Imediatamente risco o nome. E arrumo um espaço na mesma caderneta pra desabafar. Antes lembro das garrafas de champagne esquecidas na adega e me aprumo pra cozinha pegar uma. Sento à mesa que já foi palco pra aquela atriz, meretriz, não sei mais, saco a rolha, a caneta, e talho o diário assim:

Vagabunda.

Deslancho outros elogios merecidos, desço a mão sem dó, escrevo, escrevo, escrevo; toca a campanhia.

Ouço o chinchalhar das chaves na fechadura, a maçaneta gira, a porta abre, um salto passeia pelo chão de taco da sala, e num repente uma brisa me faz chegar o cheiro daquele perfume que agora lembro o nome. Marisa está na porta da cozinha, olhando pra mim, e pra caneta, que rola no chão.

Eu paralisado.

- Me serve uma taça?


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