quarta-feira, 3 de março de 2010

Chuvisco


Conto premiado no CONCURSO NACIONAL DA CEPE
http://www.cepe.com.br/editora_regulamentoconcurso.php

(Companhia Editora de Pernambuco)
nov / 2010

Revisto-me naquela foto. Aquele dia. Mas não me acho. Chuvisco. Penso nele. Desdobro o coração e redescubro num vinco a trilha da nossa amizade. Calibre de antigamente. Mesmo tempo em que a verdade ainda dava em pé, e que as cores do casarão-fazenda cochichavam histórias do lugar. Familiazona; cesta farta de tudo que eu sonhava pra mim; mas vida é viagem que é ida sem vinda e eu acrescido de passado descarto adulterar infância. Mesmo que me sinta caroço. Hoje olhar eu posso.

Bisbilhotava por cima do muro. Via filme. Uma penca de primos trapeziava em galhos e eu seguia sombra-meninos e sombra-meninas e sombra-árvores dançarem juntos na terra do chão. Inveja é palavra adulta mas criança na sensação. No meu lado da vida tinha mata, mas tão sóbria que assustava raios de sol. Eu me sentia escuro.

Aquela família vivia sempre pra fora. Por isso eu sabia de cor o carrossel do dia-a-dia. Cedo despertar; o avô horta, o pai cidade; a mãe cozinha; os primos liberdade. De tudo eles. Quanto mais na roça arruaça armavam, mais pra casa confusão traziam. E eu gostava de ver. Depois do almoço de cheiro bom, a tarde calava em sépia, a mãe caçava piolhos nos mais miúdos, o pai voltava com seu amor devagar. De longe, o avô, fumo pitado, trazia o cavalo chamado Saudade.

Das cenas que acompanhava, tinha uma predileta que imantava minha atenção. Ria do magricela de suspensórios que bailava sozinho. Não raro, liderava uma confederação de fedelhos em aventuras galácticas; mas quando só, mergulhava em si até sumir de onde eu o via. A um só tempo, ambas ocorrências faziam mágica na minha imaginação e me congelavam estátua. De olhos debruçados sobre o muro, eu assistia.

Aconteceu num dia em que a cama me dispensou do sono mais cedo. E a saída foi espreguiçar a madrugada no quintal com direito a espiada no vizinho. Nessa manhazinha, o magricela orquestrava astros com uma vareta, desenhando planetas no terreno a minha frente. Eu suspeitava que seus suspensórios enganchavam no céu e que flutuar para ele era coisa possível. De algum lugar, também me via vendo-o, de muitoemcima talvez, imaginando se ele me percebia, se tudo era real, ou se eu era o diretor dum filme só meu.

E foi quando eu viajava em imagens que a ficção tomou gole de realidade.

O menino largou a vareta e me fitou minutos alargados por um sorriso.

Ele se aproximou.


- Vem cá.


II
Durou um ano-luz o pulo que dei para o outro lado do mundo. Na descida, meu joelho ralou no tijolo: pedra, pele, sangue; estilingue ardente que me acordou aos nove anos de idade. Eu sequer havia aterrissado, e disparamos os dois em pique de corrida lado a lado, o vento fazia um corredor entre nós, enquanto ele me dizia que seu nome era Chuvisco.

Pouco mais, a manhã ia desvelando o roteiro que eu já conhecia. A horta esperando o avô, a cidade o pai, a cozinha a mãe, a liberdade todos os primos com quem vivi aquele dia de janeiro.

Eis que brincamos até tapar os buracos da vontade. Pelejas, mangas, riachos, rachas de charrete e broncas da mãe, igualzinho como eu pintava. Sem esquecer das jornadas épicas que Chuvisco oferecia de lambuja. Juntos inventamos batalhas de alvorada e ao entardecer já havíamos conquistado o mundo. Somados os primos, éramos uma só pessoa de 16 pernas; uma toada de pés descalços que a terra se acostumou mal de tanto beijo. Nossas risadas aguavam o ar e não tinha mais saber se estávamos correndo, nadando, ou voando. Até o tempo parou pra olhar: foi como se eu tivesse vivido uma saga de anos a fio costurada em uma sunga de pano. Naquele dia eu era um peixe do cardume. E me senti aceso.


III
Nesse mesmo dia é que foi feita a foto. Conforme costume, um profissional vinha da cidade visitando fazenda, mais fazenda, fazendo retratos de famílias (na minha não passou). Assim reuniram-se todos sob a orientação do fotógrafo.

E a cena grafou meus olhos num piscar estanque.

Primeiro plano: a horda de primos. Chuvisco na ponta esquerda, a molecada desengonçando na seqüência, e os piolhentos terminando a fila na direita. Lembro destes dois últimos, arredios, por causa das cacholas nuas.

Segundo plano: a prima mais velha, a mãe ao centro segurando a miúda, o pai ainda na cidade carece de presença na composição geral.

Terceiro plano: o avô e o cavalo Saudade. O homem usava chapéu diário, que dava sempre conforto de abrigo à família, como se protegesse a todos pela sombra das abas. Queimava também um cigarro de palha, cuja fumaça expirada eram as palavras que ele não tinha.

Quarto plano: o muro.

Quinto plano: os fundos de minha casa.

(...)

Inventario a figura completa. Reviso todos os planos. Tento me encontrar na foto.

Estou presente?

Busco em cada canto com lupa, passo os olhos em cada pessoa, não me vejo. Mas o retrato foi tirado naquele dia, naquele mesmo. Quando investigo melhor, acho uma mancha escura em cima do muro, junto às árvores da minha casa. Era o posto exato de onde eu espiava aquela família. Faço esforço. Coloco a imagem contra luz, vasculho o arquivo mental, quero clarear a área, as idéias, tento me revelar, mas se me revelar ali é que me perco de vez. Então a tudo faltaria sentido.

Trago refúgio na sensação: o registro físico daquele dia no corpo. Basta sentir as pernas seguindo Chuvisco, a água do riacho, o rangido da charrete, a vibração da sonora bronca da mãe. Está tudo aqui. Eu juro.

Pois é que lá eu vi o amor a olho nu.

Só que agora não me acredito, não me consumo, e rôo as unhas como se estivesse apagando memórias.

A imagem perde a cor, esqueço os nomes que sabia de cor, me sinto novamente em cima do muro.

Eu invisível tento ver a foto.

Mas a lembrança dispara sentada no cavalo.

3 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Muito bom, palavras bem escolhidas e costuradas, num estilo que me lembrou muito um certo escritor e a ninguém causaria estranheza encontrar um trechinho assim simples, rememorando Chuvisco, no meio dos contos do Sagarana.
Abs!

Fernanda Grigolin disse...

é tão lindo. sinto saudades do Chuvisco.

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