segunda-feira, 6 de junho de 2011

EDITEMO-NOS






Notícia ruim, anúncio de pinga, óleo de fígado de tubarão, um pênis maior. Dizer que fiquei enfadado é pouco quando, nesta manhã, abri a janela.

Do computador, naturalmente. Pois mesmo o muro à frente de casa – descascando com o humor desidratado do meu vizinho – é uma edição mais confortante da realidade do que a espontânea e incontrolável oferta virtual. Algo para qual raramente geramos a demanda, mas que nos demanda, ocupando tempo e espaço em nossa janela mental. É assunto sabido.

Se a memória é uma ilha de edição, como sugeria o poeta Wally Salomão se referindo a vida já vivida, também a vida corrente, presente, e ainda aquela que desejamos e projetamos, todas elas são laboriosas e constantes edições. Viver é editar, assim como editar é morrer.

As janelas, físicas ou virtuais, são ícones clássicos da edição do mundo. Da mais uterina realidade somos expulsos por uma janela apertada, sufocante, e damos numa espécie de set de filmagem, de luzes e equipamentos, nosso pai escolhendo os melhores ângulos para o vídeo, e nós com as janelinhas oclusas, absorvendo flashes esparsos de milhares de novos assuntos não escolhidos, logo na primeira cena do roteiro.

Nas nossas viagens, de bumba até Osasco ou de jato ao Japão, deslocamento, percurso e paisagem são algo que conhecemos através de molduras; recortes que oferecem fragmentos ingênuos de uma dimensão astronomicamente mais ampla a mim, a você, ao astronauta em órbita da Terra.

São também sempre fruto de edição os conteúdos que orbitam à nossa volta. Somos educados pela eleição de valores dos nossos pais, pela abordagem relativa dos livros escolares, e formados pelas morais e maneiras adotadas pela nossa cultura, pelas informações às quais temos acesso, pelas notícias, anúncios, pelos óleos de fígado de tubarão, pelas promessas de um pênis maior. Assim como editados são nossos amigos e parentes, legitimados quando os aceitamos, ou não, nos convites das redes sociais. Quando casamos, fazemos quiçá nossa maior edição: a escolha de um entre os mais de seis bilhões de seres terrestres – o que, para alguns, se reprisa em (in?)consequentes edições.

Nesta emaranhada trajetória de permanente seleção, é difícil compreender a palavra realidade, algo formada pela sobreposição de infinitas possibilidades, sempre determinada individualmente. O que podemos, afinal, é aprender a exercitar bem o direito livre e democrático da escolha aliado à tentativa de estar sempre expandindo e desconstruindo os limites de nossas molduras. Com sorte, antes que cheguemos à edição final.

O que fiz, nesta manhã, enfadado e prestes a ser fuzilado por um pelotão de pop-ups, foi valer-me do meu direito democrático de aniquilá-los pontiagudamente com meu indicador-editor repousado sobre o mouse. E, aproveitando, ao mirar o muro descascado do vizinho, as lascas de tinta recortando a parede, abri um pouquinho mais a janela.

4 comentários:

Unknown disse...

Mais um ótimo texto!
abs!
Sergio

Badah disse...

Me fez lembrar a fala do Wim Wenders no "Janela Alma", em que ele dizia que quando não estava usando óculos, sentia falta do recorte, do enquadramento que o aro oferece - o que permitia selecionar melhor o que ele estava vendo.

O Neto do Herculano disse...

É sempre proveitoso
abrir as janelas,
todas.

Babilônico disse...

MUCHO PHODA HERMANITO

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