segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A vida após o muro


Texto vencedor do concurso literário da Revista Piauí
Edição número 33


De nada adiantara a tranca de aço maciço chumbada na entrada principal. A Casa de Assistência Jacarandá perdera seu mais antigo e astuto hóspede, num descuido daqueles dignos de quem tem os dois olhos no peixe e se esquece do gato. Foi numa manhã ensolarada que Zé Gardênio escapuliu por um túnel cavado na terra às próprias mãos e à custa das dezenas de horas solitárias dedicadas à faina na horta comunitária, da qual, já há mais de 20 anos, fora delegado o manda-chuva.

O bedel da Casa cansara de ouvir o bate-papo interminável que Zé Gardênio travava com pés de alface, escarola e outras verduras – incluindo seu mais fiel companheiro, um pé de repolho – e largava da guarda para enrolar na paquera a mocinha da limpeza. Era o suficiente. Pazinha nas mãos, o designado esquizofrênico socialmente inapto (conforme seu prontuário), ganhava valiosos centímetros a cada dia, se aproximando pouco a pouco ao Berlinzão, como os débeis chamavam carinhosamente o muro dos fundos do sanatório, onde ficava a horta.

Chegado o grande dia, Zé Gardênio despediu-se das alfaces, escarolas e de seu amigo de fé, o pé de repolho. Piscou para o sol que assolava a careca, e, deixando escorrer um fio de baba no seu macacão amarelo escolhido para a fuga, rememorou com pesar os anos que passara no sanatório. Não mais seria um doido varrido. Decidido, aprumou-se como se fora debutar em um novo hemisfério. Confirmou a ausência de vigilância por perto – teria a mocinha da limpeza cedido às investidas do bedel? –, afastou a lona que escondia a entrada do túnel e, num rebento, atirou-se com volúpia buraco adentro, engatinhando determinado rumo ao mundo dos normais.

Sete minutos mais tarde, Zé Gardênio ganhara a liberdade. O buraco de saída do túnel dava para uma movimentada avenida que margeava o sanatório. Deu umas palmadas em si, como que para sacudir a poeira do passado, e achou-se um homem são, pronto para restabelecer contato com seus iguais. Mas quando ergueu a cabeça e fitou os olhos na paisagem à frente, deparou-se com a complexidade de um mundo o qual desconhecia. Viadutos, esquinas, arranha-céus. Camadas sobrepostas de chão, nenhum horizonte. A cidade desbotada, intransponível, indecifrável. Viu-se só, paralisado, e tinha a testa franzida em ziguezague. Sentiu-se espremido em formas geométricas como se cada linha deste cenário fosse um limite para sua existência e a ausência delas, uma ameaça. Aflito, refletiu consigo: não posso mover meus passos por esse atroz labirinto.

Sete minutos mais tarde, Zé Gardênio valia-se do ombro amigo do pé de repolho para desabafar a experiência da vida após o muro. O aterrado hortaliço, curioso pelo relato que ouvia, indagou com máximo interesse: “Mas há lá fora outros iguais a mim?”.

Deixando escorrer mais um fio de baba pelo macacão amarelo, Zé Gardênio respondeu com uma certeza abissal:

“Não. Lá fora é tudo uma grande, vasta e interminável plantação de abobrinhas.”

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito cabuloso. Belo texto, bela fuga.

Um abraço meu querido

Chicó, o Vianna.

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