segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Ó


Baseado no título do livro de Numo Ramos: Ó
ganhador sétima edição do Prêmio Portugal Telecom de Literatura

Ó

De ode. Às possibilidades de reinvenção da roda, do mundo, ou, ao menos, do nosso olhar. Ó do espanto: o desvelo do inédito. A ponta do fio do novelo. De onde tudo começou, se transformou, e absorvemos hoje como verdadeiro. A lã na qual nos refugiamos do frio.

Forma diminutiva do verbo olhar na 3ª pessoa do imperativo afirmativo (olha você), esse Ó não é o da admiração (Óóó...). E sim do pasmo, do queixo caído. Essa contração onomatopéica – e gutural – é uma interjeição que parece guardar em si uma ironia invencível: uma breve letra, da forma circular comum, sem pretensão contorcionista ou vaidade, potencializa e ilumina gratuitamente, pela força do seu acento, e seu caráter íntegro e afirmativo, tudo aquilo a que se refere ou designa. Como um espelhinho que reflete o sol numa parede. E faz a conjunção entre o verbo e objeto chegar em tom singelo. Como uma obra que comunica muito com pouco. Um artista tímido. O bolo delicioso da vovó que diz: não foi nada.

Esse mesmo Ó ainda vem alertar atenção e cuidado. Não é tão simples como você está pensando. Viver é arriscado, ou anestésico, depende da elasticidade das suas pálpebras. E traz em seu som uma informalidade de tom pessoal, como dois amigos no boteco discutindo futebol. Só que o jogo é mais denso e movediço. Por isso Ó, a partir da forma circular, dá a impressão de circunscrever um mundo, do qual um observador (o acento) se desgarrou a tempo, salvou-se, e agora observa esse mundo de fora, comentando-o.

Quando usado como expressão (é o ó) aponta algo incabível, inomeável, e que carrega certa conotação de desordem. Posto assim sozinho, Ó é a um só tempo aquele espelinho que ilumina, e a própria escuridão. Então Ó talvez traga o recado da ilusão que criamos, e à qual nos confundimos para sobreviver num mundo contraditório, vesgo, e sem respostas. Esse nó, que só parece desatar com a luz de um farol.


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