Antes que o Pari faça sombra no Carrão, o Perus
esconda o Jaraguá, o Jaçanã se debruce sobre a Penha e São Domingos esprema o
Limão; antes que o último a sair já nem precise mais apagar a luz e que
remediar não tenha mais serventia, valeria, como faria qualquer paciente, ouvir
uma segunda opinião.
É à cidade verticalizada, que faz do espaço tabuleiro
e joga o escanteio no horizonte, que os trabalhos de Flávia Mielnik oferecem novas
perspectivas. Ao flagrar e intervir nas camadas urbanas, a artista cria ilusões
necessárias: planos de fundo e de futuro. O tapume que antes tapava, agora
tapeia. Imagens à margem, ganham atenção. A ruína que estava à mostra, vira
mostra; a obra, obra. Mas só para os olhos de hoje, nessa exposição. Pois, in
loco, o ato é um carimbo insinuante, uma tatuagem provisória, um miniconto tingido
na metrópole.
Intervir: intrometer-se, estar entre duas partes;
tomar partido voluntariamente; tornar-se mediador; interceder; levantar-se em
defesa. Se as realidades hipotéticas têm cunho poético, têm também punho
político. Mexer na textura, na organização e na leitura do espaço. Trocar a construção pela imaginação civil. É discurso, manifestação. Bandeira individual
que, largamente, abraça o coletivo.
As capas de realidade que o trabalho vela e desvela
ainda levam além. Convidam-nos, passantes-espectadores-cidadãos, às histórias
metidas entre frestas, rachas, cômodos e níveis, antes invisíveis. Abrem vãos e
portais para memórias esquartejadas, sobrepostas, semi-silenciadas. Recontam
tramas por metáforas arquitetônicas.
Assim, antes que nos esqueçamos da cara da rua, dos
furos no muro, do parentesco entre a jarra, o barro e o tijolo; antes que deixemos
de narrar os micro-acontecimentos do nosso entorno e que não escoremos mais os
ombros na tinta lascada de uma casa antiga,
esses trabalhos nos contratam como testemunhas de um enredo afetivo, compartilhado,
do qual, então, lembramos fazer parte.